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Assim eram as festas na mansão da Playboy

No dia da morte de Hugh Hefner, crônica de 2004 relembra a época das orgias mais eróticas do planeta

Foi anunciada como festa, mas já antes de atravessar os portões da lendária mansão da Playboy de Hugh Hefner, tive a sensação de que havia algo estranho Começando com a cena no lobby do Beverly Hills Hilton, onde os “convidados internacionais” se reuniram para se preparar e participar da mais recente comemoração do 50º aniversário da Playboy

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Por sorte, nosso motorista voltou a dirigir, atravessamos os portões pretos da mansão e subimos por uma avenida cercada por estátuas greco-romanas, afrescos de antigas cenas de bacanal e sinais de trânsito amarelos com placas dizendo: “Pare para os animais” e “Playmates jogando” O jardim era denso como uma selva; o prédio, de antigo estilo inglês Como o internato – com sua espessa pedra cinzenta, suas muralhas, suas torres e seus vitrais com imagens de águias – de Harry Potter

Todas as garotas – devia haver cerca de 30, com uma média de idade de 21 anos – usavam saltos mortalmente altos, mas havia três tipos de vestimenta: fantasias de “coelhinhas” cor-de-rosa, amarelas e verdes, com orelhas levantadas e pompons no traseiro; jaquetas curtíssimas, negras e brilhantes, com echarpe branca e botas dos anos sessenta, e pequenos biquínis pretos Havia mesas e um pequeno palco atrás do qual duas grandes telas projetavam imagens de outras mulheres com pouca roupa que dançavam com energia em uma festa anterior, também realizada na mansão A música com a qual dançavam na tela era a mesma que ouvíamos na festa – a mesma com a qual dançavam algumas de nossas garotas –, então tínhamos a sensação de estar em dois lugares e dois fusos horários ao mesmo tempo

Todos avançaram para o bar, pegaram uma bebida em um copo de plástico, tomaram-na em um só gole e se lançaram à atividade que, para a grande maioria dos convidados, consumiria a maior parte da noite: tirar fotos com os braços ao redor do maior número possível de garotas As jovens, independentemente da fantasia que vestiam, sempre se submetiam ao ritual sem hesitação, apressando-se como boas profissionais a adotar o mesmo sorriso congelado, uma vez após a outra

Era o mesmo sorriso que se vê nos rostos das apresentadoras de noticiários nos Estados Unidos, das vendedoras de lojas, das garçonetes: de uma uniformidade quase assustadora, robótica, desumanizada e transparentemente falsa Exceto que, neste caso, a pouca roupa das garotas e a sexualidade natural e despreocupada que supostamente emanavam tornavam o efeito ainda mais sinistro

Pareceu-me que, em nome da objetividade jornalística (que eu soubesse, havia apenas outro jornalista na festa), tinha que tentar iniciar uma conversa com alguma delas, tentar compreender se havia algo de vida autêntica por trás daqueles sorrisos plásticos; ou, melhor dizendo, dado que tinha de haver, se estariam dispostas a permitir que essa vida emergisse enquanto exercitavam suas obrigações profissionais falando comigo

Foi um momento transcendental, daqueles que reafirmam nossa fé na humanidade Estava há uma hora na mansão de Hef e ainda me restavam outras três, mas esse “nada mais que”, pronunciado apesar do fato de que, no último momento, havia tentado segurá-lo, me proporcionou um dos dois vislumbres de autêntica humanidade de toda noite, ao me deixar ver aquela sincera maldade feminina, aquele desprezo competitivo destilado com pesar pela playmate Claro que se recuperou imediatamente e retomou sua atitude profissional quando perguntei se poderia se aprofundar um pouco nessas diferenças tão sutis As playmates, explicou, eram as que haviam posado nuas para a revista As fantasiadas de coelhinhas eram mais recentes do que outras mais veneráveis como ela – ex-Miss Agosto, como tive a honra de descobrir –, que permanecia na categoria de playmate há cinco anos

Por volta das 22h começaram a aparecer algumas celebridades (a maior agitação foi causada por Pamela Anderson), seguidas por Hef, cuja chegada foi recebida com grande comoção de fotógrafos e um redemoinho de convidados Acompanhado por um séquito de quatro loiras superoxigenadas, com vestidos que pareciam uma caricatura grosseira do look Versace, com enorme fenda na perna e decote profundo, Hef entrou como um velho imperador romano, tão enrugado como eu esperava, mas mais baixo As quatro mulheres, uma das quais era de idade tão estranhamente avançada para aquele ambiente que (se interpretei bem a evidente pele esticada) devia ter a metade de sua idade, formavam parte do grupo de sete que, segundo me informou solenemente um convidado sul-americano, moravam permanentemente com ele em sua mansão O que? Quer dizer que…? “Sim”, respondeu o sul-americano com um sorriso lascivo “Faz aquilo com todas elas Todas! As vantagens do Viagra, você sabe”

Claro, pensei enquanto chegávamos ao zoológico Como as relações que mantém com seus papagaios Deve ter uma dúzia de criaturas emplumadas de cores estridentes, que falam, que emitem palavras ou, melhor, ruídos, muito pouco relacionados ao cérebro, muito menos com o coração Da mesma forma, em meia dúzia de grandes gaiolas banhadas em uma luz vermelha de bordel, Hef reuniu periquitos, tucanos, macacos e pequenas criaturas peludas que poderiam ser doninhas, martas e guaxinins Garotas, papagaios, macacos: não importa O importante é colecioná-los e exibi-los em suas revistas e na mansão da Playboy, sua grande prisão dourada

Ridículo Pior que ridículo: demente Esses homens que tinham ido comigo à mansão da Playboy caíram no erro de acreditar que aquilo era uma festa de verdade, que iriam se entrosar de verdade com outras pessoas, teriam conversas autênticas e poderiam alimentar a expectativa de estabelecer relacionamentos genuínos que pudessem sobreviver à festa, chegar à vida cotidiana Tinham perdido o juízo e engoliram a fantasia de que aquelas lindas jovens de 20 e poucos anos, com seus peitos transbordados e seu sorriso profissional, se arrumavam assim com o propósito declarado de obter seus favores sexuais Não só é que as garotas estivessem à sua disposição; é que, segundo haviam se convencido aqueles homens na sua loucura, seu objetivo urgente e imediato era acabar a noite peladas com eles, na cama! Eram como crianças na Disneyworld, dispostos a acreditar que as pessoas disfarçadas que eles viam eram os Mickeys e Pernalongas verdadeiros Umberto Eco fala disso em Viagens pela Hiper-Realidade, seu ensaio sobre as galerias de personagens famosos, os parques temáticos e os museus dos Estados Unidos, onde “os limites são cada vez mais imprecisos entre jogo e ilusão”, até que “o absolutamente falso se torna real”

Talvez esse fosse um detalhe de bom gosto, mas que não eliminava – sobretudo com o alarido que cercava a atuação – o melancólico pano de fundo Após duas horas e meia de uma noitada que já começava a me parecer insuportavelmente longa, me vi conversando com um garçom, um homem seco, alto, que disse que trabalhava havia 20 anos para as festas de Hef, desde a época em que o presidente Jimmy Carter fez a famosa confissão em uma entrevista à Playboy: “Já olhei muitas mulheres com desejo Cometi adultério em meu coração muitas vezes”

Mas Hef é malandro Tem um aspecto elegante, à vontade com seu séquito de loiras Observa o número de strip-tease com uma benevolência satisfeita, se levanta e dança com alegre rigidez ao som do mais novo rap É um arquétipo, um sultão americano moderno, um colecionador de mulheres – que ainda por cima até pretende que passem por virgens vestais – que realizou a grande fantasia masculina de conquistas sexuais sem limite Ou, pelo menos, fez com que isso pareça realidade, graças ao zoológico de mulheres que lhe permitiu reunir seus milhões E isso é o que basta para que os participantes da festa, os quais, em geral, pareceram se divertir muito em uma noitada memorável, cujos detalhes, sem dúvida, se apressarão em contar até o dia de sua morte aos amigos na Ásia e no Leste Europeu, embora sem mencionar que na realidade – como confirmou o garçom – não acontece grande coisa nestas famosas festas da mansão da Playboy

John Carlin é um escritor e jornalista britânico nascido em Londres, em 1956 Estudou língua e literatura inglesas na Universidade de Oxford, mas sua atividade profissional se centrou no jornalismo Em 2000, ganhou o Prêmio Ortega y Gasset por um artigo para o EL PAÍS sobre a imigração na Espanha